quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Chagas Baptista, autor de Leandro


Os amigos Leandro Gomes de Barros e Francisco das Chagas Batista, pioneiros da Literatura de Cordel brasileira.


Interessante artigo da professora Vilma Mota Quintela, publicado na revista Cultura Crítica, da APROPUC-SP, de 09.03.09


Para nos aproximarmos de um autor, nada melhor do que conhecermos sua obra. Posto isso, inicio este artigo comentando a antologia Cantadores e poetas populares, publicada em 1929, na capital da Paraíba, sob o selo da Popular Editora, de propriedade de Francisco das Chagas Batista. Nesse trabalho, o autor-editor paraibano apresenta o que considera "a melhor parte" da poesia popular nordestina, relacionando, em notas breves, os cantadores e poetas de ofício mais representativos dessa produção, do seu ponto de vista. Essa foi, sem dúvida, a primeira obra com intenções eruditas a destacar a presença de Leandro Gomes de Barros no contexto da produção poética nordestina, tendo como pressuposto a autonomia da literatura de cordel em relação à cantoria2. É, de fato, significativo que esse livro tenha sido, inteiramente, produzido no âmbito do cordel, tendo como autor e editor um de seus principais representantes no período. Tomando como ponto de partida a fala inicial ao leitor, cumpre aqui destacar essa obra como representativa de uma postura em certa medida diferenciada em relação ao conjunto do que havia sido produzido sobre o assunto até então:

Notando que os illustres escriptores Drs. Gustavo Barroso, Leonardo Motta e Rodrigues de Carvalho deixaram de incluir nos seus livros: "Ao som da viola ", " Cantadores", "Violeiros do Norte" e "Cancioneiro do Norte", a maior e melhor parte dos versos dos poetas populares do nordeste, vivos e já fallecidos, venho reuni-los nesta Anthologia Regional, no intuito de prestar uma justa homenagem a poetas obscuros e desconhecidos dos nossos estudiosos historiadores nordestinos (Chagas Baptista, 1929: 1).

Como é possível observar, explicita-se, no enunciado, o gesto do autor no sentido de ampliar e reorientar a produção sobre o assunto, introduzindo esses poetas, para usar sua expressão, obscuros. Com isso, por um lado, Chagas Batista inscreve o seu posicionamento nesse campo, já ocupado pelas autoridades por ele mencionadas dentre outras, surgidas no contexto do projeto etnográfico que ganhou expressão, no Brasil, a partir da segunda metade do século XIX, no sentido da definição do que seria a cultura popular nacional3. Contudo, ao se colocar nesse campo, Chagas Batista põe em prática valores e escolhas que nem sempre se coadunam com as posições aí dominantes. Ele fala, não como as autoridades que nomeia, mas, antes, como um autodidata inserido na cultura que ele também concebe como regional e, como denota o título da antologia, popular. Mais que uma contribuição ao folclore, tal investida representa o posicionamento do autor pela institucionalização, ou seja, pelo reconhecimento dessa cultura no âmbito das práticas consideradas cultas. Ao configurar um diálogo com a tríade que antecedeu o escritor Câmara Cascudo na pesquisa, no registro e no estudo da cantoria no século XX, o autor autodenominado popular transita no campo da erudição, apropriando-se dos meios para instaurar uma postura, de certa forma, concorrente. A propósito, para melhor representar o lugar de onde Chagas Baptista enuncia e o contexto que possibilitou seu posicionamento como autor, vale abrir um parêntese para uma breve nota biográfica.

Sobre Chagas Batista, o primeiro dado a se ressaltar é, sem dúvida, a sua descendência de uma família de cantadores e glosadores que fizeram fama na Serra do Teixeira, situada no Planalto da Borborema, zona sertaneja paraibana, onde surgiu uma geração que ajudou a definir o código da cantoria clássica. A propósito, era neto do glosador Agostinho Nunes da Costa (1797-1858), e sobrinho dos cantadores Ugolino (1832-1895) e Nicandro Nunes da Costa (1828-1918), ícones dessa geração, que ele acabou por consagrar em seu livro. Vale lembrar: a literatura de cordel, que se define, do ponto de vista lingüístico, como um gênero de discurso narrativo em versos, deve suas formas poéticas básicas à cantoria, o que, por um lado, justifica sua grande penetração no sertão e arredores, onde se localizou, durante muito tempo, seu público mais coeso. Cumpre, também, dizer que, sem exceção, todos os autores que participaram do momento de formação do sistema editorial do cordel descendem desse meio cultural, de onde, também, vieram, em grande parte, os autores responsáveis por sua continuidade no decorrer do século XX. É o caso, por exemplo, de Leandro Gomes de Barros, que se mudou para o Teixeira por volta dos quinze anos de idade, onde permaneceu até migrar, provavelmente, no final da década de 1880, para a comercial Vitória de Santo Antão, indo, em seguida, para Jaboatão e, finalmente, para Recife4.
Entre os poetas que, de alguma forma, podem ser incluídos nesse momento inicial, que corresponde, mais ou menos, às duas primeiras décadas do século XX, há de se mencionar, ainda, Silvino Pirauá de Lima (1848-1913), José Galdino da Silva Duda (1866-1931), ambos contemporâneos da geração do Teixeira, e Melchíades Ferreira da Silva (1869-1933), que tem em comum com Silvino e José Duda o fato de ter se destacado, em seu tempo, como cantador5. No caso, os vínculos do poeta de ofício com essa cultura oral condiciona a padronização de um código discursivo diferenciado, que vem a atender, especialmente, as injunções da comunicação verbal nesse âmbito, tornando possível a formação de um público consumidor também diferenciado no campo da produção cultural impressa local.

Além da origem cultural desses poetas, há outro fato que torna possível Chagas Batista e seus contemporâneos existirem como autores, qual seja, a migração6. Se, por um lado, as relações desses poetas sertanejos com a cantoria são decisivas ao cordel (na medida em que lhes faculta a seleção de um código poético com ela identificado, que possibilita a assimilação do cordel nesse meio), sua migração da zona sertaneja agrária para os centros locais da produção cultural impressa, por outro lado, apresenta-se como condição de possibilidade da transformação desses poetas em autores. Quanto a isso, temos, no caso específico de Chagas Batista, que, em 1900, com dezoito anos, o autor transmigra do Teixeira para Campina Grande, uma das principais cidades da Paraíba, do ponto de vista econômico. Lá ou em Alagoa Grande (onde trabalhou como operário na rede ferroviária que se estabelecia entre o litoral e o sertão, como uma conseqüência do desenvolvimento comercial observado em determinadas áreas nordestinas), teria chegado a freqüentar a escola noturna. Em 1902, começou a viver como ambulante, editando e fazendo circular o primeiro folheto de sua autoria, Saudades do Sertão. Fez, também, já nessa época, incursões no campo da poesia lírica, tendo produzido poemas esparsos, alguns publicados em jornais. Já em 1905, um artigo veiculado no jornal O Combate registra o contato do autor com pessoas ligadas ao metiê do publicismo paraibano:

Escolhi para assunto destas linhas um pobre sertanejo que, não há muito tempo, andou aqui em diversos lugares do interior, vendendo uns folhetinhos de versos que apenas traduziam a força de vontade de seu espírito de moço desejoso de instruir-se e ávido de um futuro mais sorridente e feliz. Pobre agricultor, nascido nas encostas da Borborema, sem nenhum conhecimento literário, sem meios que o melhor recomendassem, escrevia contudo algumas quadrinhas que, embora sem arte e incorretas, deixavam transparecer pálidos reflexos de sua inteligência prometedora. Deixou a vida campestre e procurou a capital do seu Estado, onde publicou alguns fascículos de poesias, tratando porém de assuntos tão baixos que ninguém deu-lhe a mínima importância, a não ser um moço generoso de nosso meio que (...) deu-lhe uns brados de avante. Vagando pelas ruas, rogando a um e a outro que lhe comprassem seus versos, para adquirir recursos para estudar, disse-me ele, nenhum apoio encontrou em sua terra, o pobre boêmio (Chagas Batista, 1977: 2)

Esse artigo, assinado por "M. M", permite flagrar um acontecimento relacionado ao fenômeno da migração, que foi decisivo para a instituição dessa categoria de autor, ou seja, o encontro do poeta sertanejo com a imprensa. Penetrar nos domínios da imprensa popular, pulsante na capital e em certas cidades do interior da Paraíba e de Pernambuco, foi, no caso de Chagas Batista, condição de possibilidade do advento do autor por dois motivos principais. Em primeiro lugar, o acesso às tipografias (multiplicadas com a popularização do jornal observada na segunda metade do século XIX, nessas cidades) possibilitou a publicação de sua primeira obra, com a venda da qual ele pôde iniciar sua bem sucedida trajetória. Em segundo lugar, o diálogo com a imprensa permitiu sua integração, ainda que marginalmente, ao debate cultural que se instituía na esfera citadina, e, com isso, dar um passo a favor da legitimação de seu ofício.

Visto por outro ângulo, o excerto acima permite vislumbrar a tensão produzida, nesse encontro, entre duas forças culturais concorrentes. Essa tensão se expressa, sem rodeios, no ponto de vista do articulista, que se coloca como o homem culto, isto é, para recorrer a uma expressão gramsciana, no campo da atividade cultural hegemônica, ao apresentar o poeta sertanejo como seu outro cultural. Refere-se a ele como uma ave rara no contexto arcaico que definia o sertão agrário no período em que se formou a literatura de cordel no Brasil. É o ponto de vista do citadino, numa época em que o fenômeno da seca e a estagnação econômica no extremo interior fizeram partir milhares de sertanejos, seja em direção ao Norte, para atender à demanda dos seringais, seja em direção ao Sudeste, onde se concentrava o desenvolvimento industrial. A esse respeito, a propósito, em estudo sobre o cangaceirismo e o fanatismo nesse período, Rui Facó informa como a cultura dos seringais na Amazônia, tornando-se o principal pólo de atração dos sertanejos nordestinos, representou um fator importante para o desenvolvimento comercial do alto Nordeste:

Embora pareça paradoxal, a ruptura da estagnação se inicia com o êxodo em massa de imigrantes nordestinos, inicialmente para a Amazônia, mais tarde para São Paulo. É o fenômeno mais progressista que ocorre nos sertões do Nordeste nesse período.
E, mais adiante:

A Amazônia continuava a atrair como miragem os pobres sertanejos nordestinos, que iam morrer de febre em suas florestas exuberantes, nos seringais que alimentavam nababos a estadear riquezas em Manaus, Belém, nas capitais da Europa... Em 1900, abandonam o Ceará 40 000 vítimas da seca. Ainda em 1915, de cerca de 40 mil emigrantes que saem pelo porto de Fortaleza, enquanto 8 500 tomam o destino do Sul, 30 mil se dirigem pelo caminho habitual, o do Norte.

No entanto, Chagas Batista e seus colegas de ofício em atividade no momento da formação do cordel pertenceram a uma minoria, entre esses sertanejos, que tomou outra direção. Não de todo desprovidos de recursos financeiros e de letramento, eles migraram para os centros comerciais nordestinos mais próximos, encontrando, na edição de folhetos, um modo de sobrevivência e, em alguns casos, de ascensão social. Em contrapartida, o investimento desses poetas no mercado do folheto possibilitou a constituição de um público de leitores na zona sertaneja oralizada, bem como o surgimento de novos valores, necessários à sua continuidade. Unidos por um código poético estrito, herdado da cantoria, esse público de leitores-ouvintes deu sustentação a um mercado literário que se expandiu, a partir daí, em direção ao Norte e, posteriormente, ao Sul, seguindo o movimento migratório.

De qualquer modo, esse artigo sobre o jovem Chagas Batista representa muito bem as condições de luta sob as quais se instituiu esse ofício, expressando o olhar de uma certa elite romântica, a um só tempo condescendente e distanciado, sobre o poeta sertanejo. A esse respeito, vale destacar a idéia do poeta como uma espécie de missionário sobrevivente da cena de pobreza e desolação que traduzia o sertão na perspectiva do citadino: "(...) o pobre sertanejo era ávido de saber, queria conhecer os segredos da ciência literária, era um sonhador, um iludido enfim, cria no futuro! Por isso o melhor qualificativo que teve em nossa terra foi o de louco". O articulista, que não ousa revelar o nome, embora pareça não compreender bem o contexto poético em que se inscreve o poeta sertanejo, não perde a oportunidade de enaltecê-lo como um pobre porta-voz da civilização no cenário do atraso.
De certa maneira, essa aparição de Chagas Batista na imprensa não deixa de servir como um indicativo do posicionamento que viria a caracterizar sua presença nesse momento de formação do cordel. De fato, em sua época, talvez tenha sido ele o autor de folhetos que esteve mais próximo do debate com certa elite letrada, estabelecida nas cidades nordestinas mais progressistas da época, a exemplo da Paraíba (hoje, João Pessoa) e do Recife. O diálogo explícito que manteve com a cultura letrada fica aliás patente em sua antologia, acima referida, e nas obras líricas e paródicas por ele publicadas, expressando-se, também, em sua produção de folhetos7. No contexto da literatura de cordel, aparecem como obras de sua autoria, por exemplo, A escrava Isaura, uma versão em sextilhas do romance homônimo; O triunfo do amor, versão baseada no clássico Quo Vadis?; A história de Esmeraldina ou Traição, Vingança e Perdão, baseadas em narrativa do Decameron. Importa ressaltar, quanto ao Cantadores e poetas populares do Nordeste, publicado em 1929, que esse livro, praticamente desconhecido até, mais ou menos, a década de 1960, tem, no mínimo, o mérito de introduzir Leandro Gomes de Barros no cenário da cultura brasileira, definindo-o como paradigma de um sistema literário à parte. Ao assim situá-lo, Chagas Batista o introduz em um contexto cultural bem mais amplo que o espaço restrito do folheto nordestino na época em questão. Eis o julgamento do autor, a respeito de seu contemporâneo:

Foi fundador da popular literatura poética de cordel no Nordeste. Escreveu cerca de mil folhetos de versos populares, tendo tirado dos mesmos mais de dez mil edições. Leandro manejava a sua veia poética com fantástica facilidade. Foi um escriptor que viveu exclusivamente de sua penna - caso raro no Brasil (Chagas Baptista, 1929: 114).

Esse gesto resulta significativo, não apenas por ter sido o antologista o primeiro a apontar Leandro como fundador em um contexto cultural, por ele, denominado popular, o que é digno de nota, mas, sobretudo, pelo estatuto concedido ao poeta, que ele reconhece como escritor. Desse modo, ao atribuir a Leandro o status do fundador de um sistema literário específico, o qual ele, como autor-editor, também, integra, Chagas Batista inscreve o lugar do cordel no âmbito da cultura impressa brasileira. Até então, de uma maneira geral, os folcloristas que informaram sobre a cantoria ainda não tinham assinalado o cordel como um sistema editorial à parte. Sílvio Romero, que falou da existência de uma literatura de cordel presente em várias partes do Brasil no penúltimo decênio do século XIX, refere-se, provavelmente, à literatura importada da Europa, já nessa época, reeditada no Brasil e vendida, no mercado ambulante, junto com outras modalidades de produção impressa destinada ao vulgo8. No geral, no conjunto do que se publicou sobre a produção poética sertaneja entre o começo do século XX, quando o sistema editorial do cordel está em formação, e a década de 1930, quando ele já havia se consolidado no Nordeste, poucas vezes essa literatura ambulante foi identificada como um sistema cultural específico. O quase desconhecimento em torno do cordel explicita-se nos estudos dos folcloristas que primeiro trataram da cantoria no âmbito da erudição. Por exemplo, Leonardo Mota, em Cantadores, de 19219, toma um texto publicado em folheto por Leandro Gomes de Barros em 191010, onde se representa a disputa poética entre Francisco Romano e Inácio da Catingueira, que teria ocorrido em 187411, como a reprodução de uma peleja autêntica12. Câmara Cascudo, em Vaqueiros e cantadores, já em 1939, distingue a produção do cordel como uma modalidade da poesia sertaneja, sem, no entanto, atentar para a especificidade do seu campo de produção.

Ao marcar, em seu livro, a posição de Leandro como fundador da "popular literatura poética de cordel", Chagas Batista, de certa forma, vem a autenticar o estatuto do autor de folhetos no âmbito do discurso letrado. Note-se não é delineado o ponto de vista do folclorista que registra um fenômeno regional, mas a perspectiva de alguém que dispõe, criticamente, o lugar de Leandro tendo em vista um contexto cultural mais amplo. O seu julgamento sobre o colega falecido ressalta sua postura como editor. Há de se chamar a atenção ao aspecto privilegiado por Chagas Batista para traduzir a importância do biografado. É Leandro, antes de mais nada, alguém que "viveu exclusivamente de sua pena", isto é, literalmente, um profissional das letras, egresso da zona da cantoria. É precisamente esse dado que importa ressaltar, no que se refere à antologia Cantadores e poetas populares, de Chagas Batista. Nesse sentido, podemos dizer que essa obra se situa num lugar estratégico, na medida em que representa um marco da consciência do cordel como um ofício poético, do qual viveram poetas como Francisco das Chagas Batista, que começou a sua empresa editora com a venda ambulante de folhetos. Além disso, cumpre assinalar: o autor dá conta dessa atividade como algo que constitui um mercado, no caso, um mercado literário específico. Como o autor representa, em sua antologia, o sistema que ajudou a instituir, podemos distinguir Francisco das Chagas Batista como "Poeta Fundador".


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1-O título deste artigo é uma referência ao texto " Pierre Ménard, Autor do Quixote" de jorge Luis Borges
2-A "cantoria" pode ser definida como um sistema poético musical, desenvolvido no sertão nordestino e caracterizado por um código poético estrito. Não se sabe, exatamente, a partir de quando a cantoria teve lugar, no Brasil, mas, provavelmente, ela se apresenta, em dado momento, como uma prática associada ao processo de colonização do extremo interior, possibilitado pela cultura do gado. A cantoria clássica se dá a partir da reunião de dois ou mais cantadores, acompanhados da viola sertaneja ou, mais remotamente, da rabeca. Ocupando lugar secundário na apresentação, o acompanhamento musical serve, basicamente, como suporte aos enunciados poéticos, que se destacam na performance. Nesse sentido, a cantoria compreende tanto a apresentação solada de um cantador que, diante de uma platéia de ouvintes, canta ou recita poemas narrativos de domínio público ou não, quanto o desafio, em parte, improvisado, entre dois cantadores que disputam entre si a hegemonia verbal sobre o outro. Aponta-se a segunda metade do século XIX como uma época de ouro para a cantoria. Em seu trabalho, C. Batista destaca um elenco de cantadores da região sertaneja paraibana que ajudaram a definir o padrão poético da cantoria clássica. A propósito, para um estudo sobre a cantoria e suas formas poéticas, ver, entre outras referências, BATISTA, 1982, CAMARA CASCUDO, 1986, e RAMALHO, 2000 e 2001.

3- Nesse contexto, há de se destacar a presença polêmica de Sílvio Romero, que, influenciado pelo positivismo, procurou, pela primeira vez, submeter a matéria a uma abordagem científica. A propósito, ver Leite, 1992, e Mota, 1994.

4- A respeito da origem social de Leandro, informa-se que o poeta viveu, até os 15 anos de idade, em Pombal (PB), onde foi adotado por uma família de pequenos proprietários, da qual descende o Padre Vicente Xavier de Farias, que gozou de certa influência social no Teixeira, onde exerceu longos anos de sacerdócio. A propósito, informa Pedro Nunes Filho: "Leandro Gomes de Barros nasceu em 1865, na Fazenda Melancia, município de Pombal, Estado da Paraíba. A Fazenda pertencia aos trisavós do autor desta nota, Manuel Xavier de Farias e sua mulher Dona Antônia Xavier de Farias, por quem Leandro foi criado. Manuel e Antônia eram pais do Padre Vicente Xavier de Farias, que nasceu na mesma fazenda, em 1822. Ordenado sacerdote, aos 24 anos de idade mudou-se para o Teixeira em 1846, tendo permanecido ali durante 61 anos. Faleceu em 13 de dezembro de 1907, com 85 anos de idade. Em 1880, os pais do Pe Vicente mudaram-se para o Teixeira, vindo em sua companhia o grande e talentoso Leandro, aos 15 anos de idade." In: http://www.secrel.com.br/jpoesia/@pn01.html. Sobre Leandro, ver, entre outras referências, Chagas Baptista, 1929; Wanderley, 1954; Batista, 1971; Almeida e Alves Sobrinho, 1978; e Terra, 1983.

5- Dentre os autores que se destacaram no contexto do cordel nordestino nessa fase, poderíamos apontar como uma exceção o poeta Pacífico Pacato Cordeiro Manso (1865-1931), que, ao contrário dos demais, todos originários do sertão paraibano, nasceu em Quebrangulo, localidade situada na zona agreste alagoana voltada à produção agropecuária. Esse autor começou a publicar seus folhetos em Maceió. Seus pais, no entanto, emigraram do sertão de Pernambuco, também reconhecido por Cordeiro Manso como terra natal. É o que declara o poeta em Um brado de Pernambuco: qual das pátrias, a minha pátria (Museu do Folclore): "Meus paes são pernambucanos / Do brejo de Madre Deus, / Onde a família Cordeiro, / Tem alli seus apogeus, / Aquelles bons sertanejos / todos são parentes meus." Entre os poetas em atividade nas duas primeiras décadas do século XX, Cordeiro Manso se destaca, basicamente, como um poeta das causas urbanas locais. Escreveu diversos casos de crimes hediondos que se tornaram manchetes nos jornais da capital, como, por exemplo, O Crime de Fernão Velho, que traz na capa três pequenos clichês, representando as personagens envolvidas no caso, indicadas por legendas. Na seqüência, surge o folheto A Morte de Marieta, a prisão do assassino, que noticia a versão mais completa do crime, dada pelos jornais. Já em O tiroteio de Maceió - Zé Povo e os Maltinos, de 1912, folheto que compõe uma série de quatro histórias de inspiração republicana, exacerba-se a veia humorística popular do autor, que narra as cenas grotescas do ataque do bando de Zé Povo aos Maltinos, representantes da oligarquia alagoana na capital. Começa o poeta: "Permittam, caros leitores / Em quatro livros iguaes,/ Descrever alguns successos / Da terra dos Marechaes; / Também de Pedro Paulino / um dos nomes immortaes." Sobre o autor, ver Almeida e Sobrinho, op. cit..

6- Remeto-me, aqui, à noção de autor como uma instituição social decorrente das injunções relacionadas aos modos modernos de produção impressa. Nesse sentido, a função-autor, problematizada por M. Foucault, relaciona-se ao sistema jurídico institucional que condiciona o universo dos discursos, pressupondo um estado de direito que reconhece a responsabilidade penal do autor e o conceito de propriedade literária. A propósito, ver Foucault, 1992, Chartier, 1994, e Edelman, 2004.

7- Leitor autodidata, Chagas Batista teve, como fonte de erudição, além de obras da literatura ambulante de origem portuguesa, publicadas, no Brasil, pela Laemmert, do Rio de Janeiro, desde 1840 (ver Cascudo, 1984), obras que se inserem no contexto da produção literária oficial. Fizeram parte do seu cânon pessoal os autores José de Alencar, Castro Alves, Olavo Bilac, Guerra Junqueiro, Humberto de Campos, Augusto dos Anjos, Tobias Barreto, Rodrigues de Carvalho e Victor Hugo, entre outros. Foi, também, leitor habitual dos jornais de Pernambuco e da Paraíba; das revistas O malho, A careta, Revista da semana e Cosmos, do Rio de Janeiro, e da Revista do Brasil, de São Paulo. Editor livreiro, Chagas Batista vendia em seu estabelecimento comercial livros do folhetinista francês Ponson du Terrail, e dos clássicos portugueses Eça de Queiroz, Camilo Castelo Branco e Alexandre Herculano, conforme consta em catálogo da sua livraria. A propósito, ver Terra, op. cit..

8- Ver Romero, 1977 (primeira edição: 1888) e Cascudo, 1984 (primeira edição: 1939). No que diz respeito a publicações populares (isto é, livros brochados, em formato reduzido, a preço acessível, publicados em grandes tiragens, para atender a uma população imersa na oralidade, em geral, pouco letrada), há de se reportar ao caso das edições Quaresma. No cenário da Belle époque carioca, dominado por editoras estrangeiras, tais como a Laemmert, a Garnier e a Francisco Alves, que atendiam, sobretudo, a uma elite cultural e econômica, o brasileiro Pedro Quaresma se estabeleceu, no final da década de 1870, difundindo, a partir do Rio de Janeiro, em várias partes do Brasil, incluindo o Nordeste, uma literatura, em boa parte, feita por encomenda para atender a esse público, então, emergente. O advento dessa editora, em funcionamento até meados do século XX, não deixa de ser um produto do fenômeno da popularização do impresso, no Brasil, entre as últimas décadas do século XIX e as primeiras décadas do século seguinte, ao qual, necessariamente, o advento do cordel está relacionado. Ver Brito Broca, 1994. Ver, também, Oliveira, 2002.

9- Ver Mota, 1987.

10- Ver Batista, 1929.

11- Ver Otaviano, 1949.

12- Já em 1903, no Cancioneiro do Norte, Rodrigues de Carvalho havia comentado essa mesma disputa, com base em uma outra versão, feita por Hugolino Nunes da Costa (1832-1895), um cantador de Santa Luzia do Sabugi, que se destacou, em seu meio, como um dos intelectuais de seu tempo. A propósito, Hugolino, que conhecia bem o Novo e o Velho Testamento, o Dicionário da Fábula, o Manual Enciclopédico, entre outros, foi, na época, um dos divulgadores do "traslado". Veículo de divulgação da poesia produzida pelos cantadores e glosadores letrados, pelo menos, desde as úlimas décadas do século XVIII, o traslado era um caderno contendo obras manuscritas, que trazia o dorso preso a um laço de fita e, na capa, em letras góticas, o título da obra a ser apresentada. Ver Lima, 1978. Sobre Hugolino ou Ugolino, ver Baptista, 1929, e Cascudo, 1984.


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Vilma Mota Quintela Doutora em Letras, com tese defendida sobre a Literatura de Cordel brasileira, tema ao qual se dedica desde o início da década de 1990.

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