sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Você já leu O dragão da maldade e a donzela guerreira?

Se eu disser que O dragão da maldade e a donzela guerreira (Palavras, 2023) é um livro especial, para mim, posso incorrer no erro de achar que algumas publicações se sobrepõem às outras. Então, para não deixar dúvidas, considero todas as obras que publiquei, até mesmo aquelas que as maturidade aponta algumas ressalvas, especiais. Para começo de conversa, é mais uma parceria com a companheira Lucélia Borges, que caprichou nas xilogravuras, merecedoras de muitos elogios. Uma delas, por sinal, a que mostra a heroína do romance (romance em versos, explique-se) iniciando sua jornada, foi selecionada pela Associação de Escritores e Ilustradores Infantis e Juvenis (AEILIJ), por meio do curador Peter O'Sagae, para compor a  13ª edição da Traçando Histórias - Mostra de Ilustração de Literatura Infantil e Juvenil, na qual trinta e oito artistas terão seus trabalhos expostos na Sala O Arquipélago do Espaço Força e Luz (Rua dos Andradas, 1223) entre 27 de outubro e 15 de novembro durante a tradicional Feira do Livro de Porto Alegre. A mesma ilustração é destaque na expografia Vidas em Cordel, do Museu da Pessoa, da qual Lucélia, Jonas Samaúma e eu somos curadores.


Lançada em setembro, na Livraria Megafauna, a obra acaba de ser selecionada para o PNLD Literário 2024 e, em breve, deve aportar em escolas públicas de todo o país. 


Abaixo, um trechinho do livro e, logo a seguir, a descrição no site da Palavras Educação:

Quando eu escrevo um romance,

Busco minha inspiração

Nas histórias encantadas

Correntes no meu sertão,

Sementes que germinaram

Nos campos da tradição.


Esta veio ao meu encontro

Contada por meus avós,

Que a ouviram de seus pais,

E agora, chegou a nós,

Fazendo as vozes de muitos

Falarem por minha voz.


Na Conceição do Paul,

No interior da Bahia,

Vivia um homem pacato,

Chamado Joaquim Maria,

Casado com dona Alice,

Pai da menina Sofia

Nenhuma história resiste ao poder do tempo se não possui tanta força quanto ele. Ou melhor: é certamente o tempo que confere às histórias sua força. Fato é que, quando emanam de uma língua e de um intelecto fecundos, podem transformar vidas, sociedades, culturas e inaugurar novas eras.

O encantamento pelas histórias pode ser buscado pelo exercício contínuo da leitura literária, em silêncio ou em voz alta. Ela enriquece o vocabulário que o leitor usará para expressar o que sente e pensa; permite desenvolver a fluência oral, que facilitará a comunicação com as coletividades das quais faz parte; e o convida a participar da construção dos sentidos da história, pelos quais será responsável, dentro do seu processo de desenvolvimento de autonomia. Ele aprenderá, pela literatura, não só sobre sua identidade e seu lugar no mundo, mas também sobre culturas, realidades e ideias muito distintas das suas.

O dragão da maldade e a donzela guerreira pode ser usado para fazer esse convite. Quando a palavra mágica, que ninguém nunca sabe qual é, acender qualquer coisa da qual jamais se esquecerá, terá o leitor encontrado o encanto de uma história — e será um dos grandes dias de sua vida.

 


Clique AQUI para adquirir a obra. 

sábado, 1 de abril de 2023

Livro Contos Encantados do Brasil é premiado com o selo Cátedra-Unesco

 


Uma boa notícia para fechar a semana e iniciar o mês. E, mesmo sendo 1º de abril, asseguro ser verdade verdadeira. O livro Contos Encantados do Brasil (Aletria), texto meu e xilogravuras de Lucélia Borges foi um dos escolhidos pela Cátedra-Unesco de Leitura da PUC-Rio para receber o selo Seleção, que premia a produção literária infantojuvenil de 2022. O reconhecimento, importante por vir de um grupo que estuda, debate e divulga a literatura voltada para a infância e a juventude, tendo à frente a professora Denise Ramalho, chega em muito boa hora.

O livro, lançado no final do ano passado, traz 55 contos populares, todos eles recolhidos da fonte da memória, a partir de um trabalho de campo iniciado em 2015. Sendo obra coletiva, divido a homenagem com as vozes da tradição, como prefiro chamar os informantes, algumas já não mais entre nós. E agradeço, sempre, o professor Paulo Correia, do Centro de Estudos Ataíde Oliveira, da Universidade do Algarve, Portugal, por sua valorosa colaboração na classificação dos contos em acordo com o Sistema Internacional ATU. E, claro, à Rosana Mont'Alverne, da editora Aletria, que não somente acolheu o nosso projeto, mas, para além disso, deu-lhe o melhor tratamento possível.

Que os nossos contos encantados cheguem a muitas estantes e continuem vivos em outras vozes.

Aproveitamos para parabenizar todos os premiados, autores, ilustradores e editoras. 

Para adquirir o livro, clique AQUI ou AQUI.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Contos de Fadas Raízes Históricas, universo simbólico, reminiscências míticas e atualizações

Novo grupo de estudos na Casa Tombada revisitará o universo simbólico dos contos de fadas.

 

1.      Conto popular: conceituação, classificação, percurso e permanência

Conto popular ou conto tradicional é denominação genérica para o rol de histórias divulgadas oralmente, com grande abrangência temática e motivos recorrentes que, combinados e recombinados, dão origem a novas narrativas. A um só tempo universal e familiar, rico de símbolos e significados, base de todas as literaturas de todos os países, manancial de que se serviram autores de todas as épocas, o conto popular é, hoje, objeto de estudo não apenas do folcloristas, inspirando, também, psicólogos, etnólogos, linguistas e escritores, além de artistas plásticos e cineastas.

2.      Contos de fadas na Antiguidade

O conto de fadas é designação genérica e, por vezes, arbitrária, das histórias maravilhosas em que predominam jornadas heroicas, intervenção de ajudantes sobrenaturais e realização de tarefas a princípio tidas como impossíveis. Embora a designação tenha sido cunhada pela Baronesa d’Aulnoy, na França do século XVII, histórias com as características descritas acima remontam à Antiguidade e podem ser vislumbradas no Egito, Mesopotâmia, Índia e Grécia. Do Épico de Gilgamesh, que precede o Gênesis bíblico em dois milênios, ao Asno de Ouro, encontramos muitos dos motivos fantásticos que ainda vivem na memória coletiva.

3.      Eros e Tânatos: De Píramo e Tisbe a Tristão e Isolda

É preciso dar mais atenção às histórias que não trazem o clássico “felizes para sempre”, clichê moderno que parece relacionar-se com certo tipo de “conquista do paraíso” a partir da ascensão social ou econômica. Essa ascensão balizada no poder temporal substitui as antigas apoteoses e rebaixam ao nível profano as jornadas iniciáticas. Histórias como a de Píramo e Tisbe, registrada por Ovídio, e Tristão e Isolda, além do estranho, e maravilhoso, mito irlandês de Diarmuid e Gráinne, servem a outra dinâmica na qual a tragédia, sempre causada por uma interdição, é sinônimo do amor servido na mesma taça da morte (e, paradoxalmente, da imortalidade).

4.      Jornadas ao outro mundo e a Terra da Felicidade

A descida ao Reino dos Mortos, tema fulcral nas religiões de mistérios, une personagens distintos e distantes, como Gilgamesh, Ulisses, Orfeu, Hércules, o deus criador xintoísta Izanágui, Jesus Cristo e o poeta Dante Alighieri. O tema da Catábase, ou seja, da descida aos infernos, encontrável também nos contos de fadas, está relacionado à busca da restauração de certa ordem perdida pela violação de um tabu ou à realização de uma tarefa impossível para o comum dos mortais. Já “A Ilha da Felicidade”, da Baronesa d’Aulnoy, o primeiro conto rotulado como “de fadas”, remete às jornadas ao outro mundo, arraigadas na psique coletiva, nas quais a busca por imortalidade, ou felicidade, fracassam diante da negligência do herói.

5.      Melusina ou o feminino incompreendido

Viva, por muitos séculos na tradição oral francesa, a lenda da Melusina, a fada iniciadora da linhagem de Lusignan, imortalizada em romance por Jean d’Arras, em 1392, liga-se a um esquema universal cujas raízes remontam ao casamento sagrado (hierogamia), rompido pela violação de um tabu. Da mitologia grega (Tétis) à Ioruba (Iemanjá), passando pelo conto popular brasileiro da Mãe d’Água e pela lenda medieval portuguesa da Dama Pé de Cabra, além do conto fantástico japonês da Yuki-Ona, a história traz pontos de aproximação com a lenda “urbana” da mulher de branco ou a noiva do cemitério.


6.      Morgana, Guinevere e o rosto feminino da Távola Redonda

Quando evocamos o vasto ciclo da Távola Redonda, com seus heróis lendários e lugares reais ou sonhados, quase ouvimos o tilintar das espadas, o ranger das armaduras e o trote dos cavalos. São imagens plasmadas em livros, canções e, mais recentemente, no cinema e nos quadrinhos. Mas, a despeito de haver se desenvolvido sob o influxo das sociedades de corte e sob a inspiração de símbolos cristãos substituindo os antigos modelos pagãos, as histórias da Távola Redonda preservam muito do substrato celta e dos mitos indo-europeus. A demonização de Morgana, avatar da deusa Morrigan, é, sem dúvida, o lado mais perverso desse processo no qual divindades antigas que desempenhavam funções vitais, abarcando todos os sentidos da existência, passam a simbolizar apenas o aspecto sombrio da vida e da natureza. Ao recuperarmos a sua dimensão divina, compreendemos melhor a nossa dimensão humana.


7.      As velhas narradoras de Basile, as fiandeiras de Cascudo e as moiras dos antigos: o fio do destino é o mesmo das histórias

A caracterização grotesca das velhas fiandeiras do conto popular homônimo por vezes se confunde com a caracterização das doadoras mágicas, como as Greias do mito de Perseu, e as Moiras e Parcas da mitologia grega e latina. As mesmas características são detectáveis nas dez narradoras das cinco jornadas do Conto dos contos e nas auxiliares mágicas do conto Pelle d’Anette, recolhido por Paul Sébillot na Alta Bretanha, França. Ameaçadoras e benevolentes, doadora e punidoras, tais personagens se fundem com a velha ogra dos contos infantis, nas palavras de Jack Zipes “perigosa e benevolente, canibal e sábia conselheira”.

8.      O conto de fadas na contemporaneidade 

Mircea Eliade, em Imagens e Símbolos, afirma que “o pensamento simbólico não é uma área exclusiva da criança, do poeta ou do desequilibrado: ela é consubstancial ao ser humano; precede a razão discursiva”. Isso talvez explique porque, a despeito do aparente triunfo do Racionalismo e do Cientificismo no século XIX, os mitos não tenham desaparecido; quando muito, eles se deslocaram dos reinos dos confins, situados para além da terra percorrível, para o espaço ilimitado; do tempo mensurável para outro, indefinido, tendo por cenário uma galáxia “muito, muito distante”, como adverte o letreiro inicial de Star Wars (1977). O conto de fadas não passa por uma reinvenção, simplesmente se atualiza, já que as suas raízes mais profundas não se encontram em um lugar específico, mas no mais profundo de nossa psique.  


Referências

ALCOFORADO, Doralice. Belas e feras baianas. Salvador: SECULT, 2008.

AMARAL, Amadeu. Tradições populares. São Paulo: Hucitec, 1976. 

ARAÚJO, Alceu Maynard. Cultura popular brasileira. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Tradução de Arlene Caetano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.

CALVINO, Ítalo. Fábulas italianas. Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. Tradução de Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Pensamento, 1989.

CARDIGOS, Isabel; CORREIA, Paulo. Catálogo dos Contos Tradicionais Portugueses (Com as versões análogas dos países lusófonos). CEAO da Universidade do Algarve / Edições Afrontamento: Portugal, 2015.

CASCUDO, Luís da Câmara. Contos tradicionais do Brasil. 13. ed. São Paulo: Global, 2004.

COELHO, Adolfo. Contos populares portugueses. Portugal: Compendium, 1996.

COSTA, Edil Silva. Cinderela: nos entrelaces da tradição. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo do Estado da Bahia, Fundação Cultural do Estado, 1998.

FERREIRA, Jerusa Pires. Armadilhas da memória (conto e poesia popular). Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 1991.

FRANZ, Marie-Louise von. A sombra e o mal nos contos de fadas. Tradução de Maria Cristina Penteado Kujawski. São Paulo: Paulinas, 1985.

GUIMARÃES, Ruth. Calidoscópio: a saga de Pedro Malasartes. São José dos Campos: JAC Editora, 2006.

GIMBUTAS, Marija. The Language of the Goddesses. San Francisco (EUA): Harper & Row, Publishers, 1995.

HAURÉLIO, Marco. Contos e fábulas do Brasil. Classificação e notas: Paulo Correia. São Paulo: Nova Alexandria, 2011.

_____________. Contos folclóricos brasileiros. Classificação e notas: Paulo Correia. São Paulo: Paulus, 2010.

_____________. O príncipe Teiú e outros contos brasileiros. São Paulo: Aquariana, 2012.

_____________, Wilson Marques. Contos e Lendas da Terra do Sol. São Paulo: Paulus, 2019.

_____________. Vozes da tradição. Colaboração: Lucélia Borges. Fortaleza: IMEPH, 2018.

KIRK, G. S. The nature of greek myths. EUA: Penguin Books, 1985.

LEEMING, David. Do Olimpo a Camelot. Um Panorama da Mitologia Europeia. Tradução de Vera Ribeiro. São Paulo: Zahar, 2004.

MEREGE, Ana Lúcia. Os contos de fada – origem, história e permanência no mundo moderno. São Paulo: Claridade, 2010.

NASCIMENTO, Bráulio do. Estudos sobre o conto popular. São Paulo: Terceira Margem, 2009.

PIMENTEL, Altimar. Estórias de Luzia Teresa (Três volumes). Brasília: Thesaurus, 1995.

PROPP, Vladimir. As raízes históricas do conto maravilhoso. 2. ed. Tradução de Rosemary Costhek Abílio. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

ROMERO, Sílvio. Contos populares do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo: Edusp, 1985.

XIDIEH, Oswaldo Elias. Narrativas pias populares. São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros – USP, 1967. 

ZIPES, Jack. The Irresistible Fairy Tale: The Cultural and Social History of a Genre. Princeton, EUA: Princeton University Press, 2012. 


Quando

às segundas-feiras – das 19h30 às 21h30

8 encontros online e ao vivo

Aulas gravadas com acesso por três meses

Início – 27/03 a 03/07/23

Investimento

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quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

O Cordel "Carnavalesco" de José Pacheco


Proposta de capa para o folheto clássico
A Chegada de Lampião no Inferno (Luzeiro), de Eugenio Colonnese

A escola de samba Imperatriz Leopoldinense foi, com justiça, campeã do último Carnaval carioca com enredo sobre Lampião e suas perambulanças pelo céu e pelo inferno, do carnavalesco Leandro Vieira. Há cerca de seis anos (2016), ao revisar o livro Breve História da Literatura de Cordel (Claridade) para uma nova edição, resolvi ampliar o capítulo "O menestrel e o bandoleiro", que abordava as trajetórias míticas do Cego Aderaldo e de Lampião, a partir de um insight: os folhetos de José Pacheco da Rocha (1890-1934), narrando a jornada post-mortem do famoso cangaceiro, se encaixavam perfeitamente na tese de M. Bakhtin sobre o riso (e, claro, na noção de "realismo grotesco"  esmiuçada por ele a partir da obra de Rabelais. Abaixo, o trecho do livro no qual abordo esta noção, evocando ainda o teatro popular de bonecos, possível inspiração de Pacheco, um homem do chão da feira, numa época em que as feiras nordestinas eram verdadeiros festivais de celebração da cultura espontânea:

28 de julho de 1938. Nesta data, ocorreu a chacina de Angicos, em Sergipe, onde, sem nenhuma chance de defesa, morreram Lampião, sua companheira Maria Bonita e mais nove cangaceiros. Virgolino Ferreira da Silva, o temível Lampião, é de longe o personagem mais biografado no Cordel. Nenhuma outra personalidade histórica chama mais a atenção dos vates populares.

O mais famoso folheto sobre o Rei do Cangaço, A chegada de Lampião no Inferno, de José Pacheco, já ultrapassou em muito a marca de um milhão de exemplares vendidos. Nele, a notícia trazida pela alma penada de um cangaceiro, de nome Pilão Deitado, dá conta da confusão dos diabos (sem trocadilhos) provocada pelo Capitão recém-chegado às profundas. Composto em setilhas, desde o início este folheto exerce um fascínio irresistível no leitor, graças ao humor ao mesmo tempo ingênuo e malicioso:

Um cabra de Lampião,

Por nome Pilão-Deitado,

Que morreu numa trincheira

Um certo tempo passado,

Agora pelo sertão

Anda correndo visão,

Fazendo mal-assombrado.

 

E foi quem trouxe a notícia

Que viu Lampião chegar.

O Inferno, nesse dia,

Faltou pouco pra virar –

Incendiou-se o mercado,

Morreu tanto cão queimado,

Que faz pena até contar!

O cordel de José Pacheco dialoga, do começo ao fim, com o teatro de mamulengos. Os nomes estrambóticos dos demônios, o Inferno descrito como uma grande fazenda, o roteiro mínimo mas recheado de situações engenhosas que lembram as gags dos filmes cômicos, além da pancadaria “carnavalesca”, não deixam margem à dúvida. A ação constante, que remete ao bailado dos bonecos, corrobora a nossa ideia. O Diabo é personagem marcante do teatro de marionetes, assim como a Morte. Esta última não aparece personificada, e nem precisa: Lampião baixa ao Inferno depois de morto.

A estrofe a seguir, particularmente, parece confirmar a noção de “rebaixamento” proposta por Mikhail Bakhtin no clássico estudo sobre o contexto de François Rabelais:

 

Lampião pôde apanhar

Uma caveira de boi,

Sacudiu na testa dum,

Ele só fez dizer: — Oi!

Ainda correu dez braças

E caiu enchendo as calças,

Mas eu não sei de que foi.

A própria descida do Rei do Cangaço ao Inferno, por seu feitio de paródia, configura-se em rebaixamento.[1] A cena escatológica imaginada por Pacheco é de total subversão. O Inferno, local de acerto de contas, região de “choro e ranger de dentes”, se transforma em cenário de uma comédia rasgada. Na obra-prima de Pacheco, a figura cômico-heroica de Lampião, síntese das camadas menos favorecidas, invade o Inferno – que, já foi dito, é representado como uma grande fazenda –, mas não toma posse dele. Arrasa-o, vinga-se das afrontas e, em seguida, vai embora.

O teatro de mamulengos no Nordeste recebia, não por acaso, em alguns lugares, o nome de presepe (corruptela de presépio), em razão de sua representação nos arredores das igrejas; e, também, em razão de mais um rebaixamento: um motivo religioso que se converte em profano. Vem daí a palavra presepada, tão ao gosto das camadas – e dos poetas – populares.[2]

Pacheco voltaria à carga em outra obra-prima, O grande debate de Lampião com São Pedro, em que funde folheto de utopia com história de presepadas, ao estilo de Lampião no Inferno. Depois de passar por regiões encantadas, o estro do poeta encontrará o cangaceiro em frente ao Paraíso, também apresentado como uma grande fazenda, já que possui uma quinta, cercas e, acredite!, um chiqueiro.

Chegou no céu Lampião,

A porta estava fechada.

Ele subiu a calçada,

Ali bateu com a mão,

Ninguém lhe deu atenção,

Ele tornou a bater.

Ouviu São Pedro dizer:

– Demore-se lá, quem é?

Estou tomando café,

Depois o vou receber.

 

São Pedro depois da janta

Gritou pra Santa Zulmira:

– Traz o cigarro caipira!

Acendeu no de São Panta.

Apertou o nó da manta,

Vestiu a casaca e veio,

Abriu a porta do meio,

Falando até agastado:

– Triste do homem empregado

Que só lhe chega aperreio!

Não é difícil descobrir que esse São Pedro desleixado vem dos contos tradicionais, nos quais encarna muitos dos defeitos e vícios humanos, em oposição a Jesus Cristo, seu companheiro de viagens. Apesar de criar a expectativa de uma briga semelhante àquela travada no Inferno, envolvendo outros santos convocados por São Pedro, o confronto é evitado por intercessão de São Francisco. Afinal, mesmo um poeta irreverente e genial como José Pacheco conhecia os limites da sátira.



[1] Rebaixamento, para o russo Mikhail Bakhtin, é “o poderoso movimento para baixo, para as profundezas da terra e do corpo humano (...)”. A partir do conceito de carnavalização, isto é, da inversão da ordem estabelecida, quando o rei torna-se um bufão e o bufão torna-se rei. Leia-se BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Annablume, Hucitec, 2002.

 

[2] 30 A informação é de Hermilo Borba Filho: “Na Bahia, dão nome de Presepe e representam grotescamente as personagens mais salientes do Gênese”. Veja-se “Mamulengo” in: Espetáculos populares do Nordeste. São Paulo: DESA, 1966.


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quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Tupynanquim e a tradição centenária dos almanaques



Assaad Zaidan, no livro Letras e História (mil palavras árabes na língua portuguesa), identifica almanaque (ár. hispânico ALMANAH / ALMANHKH) às palavras clima, calendário e, por fim, livro de indicações úteis. Talvez a última se aproxime mais do Almanaque Tupynanquim, idealizado e editado por Klévisson Viana. Tradição renovada, a publicação 2022/2023 não traz, como outros almanaques nordestinos dos tempos áureos da literatura de cordel, calcados no Lunário Perpétuo, prognósticos e profecias nem lições sobre astrologia ou reminiscências dos velhos grimórios. Reúne, porém, como estampa a sua capa, “contos, fábulas, cordéis, humor, poesia e informações com a cara do Nordeste”. Por ser um apanhado de múltoplas tradições, reúne artistas das letras e das goivas, e mescla pequenos ensaios com poemas e contos, como o que me narrou Mestre Aldenir do Reisado, O Velho Chagado, enfeixado em minha mais nova obra Contos Encantados do Brasil (Aletria, 2022).

Entre os colaboradores, deparamos nomes como Braulio Tavares, poeta, roteirista, ficcionista, compositor; Paola Tôrres, médica, cantora e cordelista; Bruno Paulino, escritor e grande investigador da história e do imaginário que envolve a figura mítica de Antônio Conselheiro; além de cordelistas como Rouxinol do Rinaré, Julie Oliveira, Paiva Neves, Breno de Holanda, Stelio Torquato e Rafael Brito. 

A lista completa de colaboradores está estampada na imagem a seguir:



O Almanaque Tupynanquim sempre chega em data próxima ao solstício de inverno (no Hemisfério Sul) e, consequentemente, ao Natal. Por reunir um time de craques, reinventando-se a cada edição, vai se tornando item de colecionador.


Para adquirir seu exemplar, ou montar sua coleção, entre em contato com o poeta Klévisson Viana pelo e-mail aestrofe@gmail.com.

E boa leitura!

terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Lançamento: O sonho de Lampião

O convite para escrever uma história sobre Lampião veio da escritora Penélope Martins, que fora sondada pela editora Ciranda Cultural. Para Penélope, eu era a pessoa ideal, embora, apesar de haver editado um livro sobre Lampião, escrito pelo saudoso historiador Antonio Amaury, em colaboração com seu filho Carlos Elydio, eu nunca tenha me debruçado sobre a história do personagem. Como autor, ressalve-se, já que sempre busquei conhecer, na medida do possível, a vasta bibliografia sobre o famoso facínora. Verdade seja dita: quanto tinha por volta de nove anos, escrevi um cordel narrando as façanhas de Lampião e Maria Bonita, a partir de relatos anedóticos ou lendários. O caderno, com o original, está, infelizmente, perdido para sempre. 

Por tudo isso, ao responder a Penélope, que atuava como interlocutora da editora Janice Florido, eu disse que aceitava desde que ela assinasse comigo o trabalho. Não seria um cordel, mas um romance biográfico, então, a devolução do convite fazia todo o sentido. "Mas eu conheço pouco sobre a vida de Lampião" foi a sua resposta. Eu redargui que isso não seria problema e indiquei-lhe uma bibliografia que, se não era volumosa, continha o essencial para a viagem que faríamos. E o livro que, desde o início se chamou O sonho de Lampião, acaba de nascer. Com o logo da Principis, selo ligado à Ciranda. E nasceu mais formoso do que imaginávamos, graças às delicadas e sugestivas xilogravuras de Lucélia Borges.

Cada capítulo é aberto por sextilhas compostas ao gosto popular, emulando a epopeia do cangaço com seus cantos de amor e de guerra. 

Da história propriamente dita muitos sabem o começo e o final. Mas resolvemos narrá-la de outra forma, fazendo de Lampião um contador de histórias, como Ulisses, desfiando seu rosário para o futuro sogro Zé de Felipe ou para o fotógrafo e dublê de cineasta, o sírio-libanês Benjamin Abrahão. 

Abaixo, um trecho do posfácio, escrito à guisa de ensaio, mostrando a presença de Lampião na literatura de cordel, no cinema e na música popular.

Conversa de cangaceiras
Xilogravura de Lucélia Borges

"Quando iniciamos a pesquisa que redundaria neste livro, sabíamos do tamanho do desafio e das dificuldades que nos esperavam. Afinal de contas, escrever sobre Lampião significa revisitar não apenas a sua história, mas de muitos outras personagens, unidos por uma teia de tragédias urdidas em tramas violentas encenadas no cenário inóspito do sertão nordestino. A mais importante, por razões óbvias, é Maria Gomes de Oliveira, a Maria de Déa, que a posteridade rebatizaria como Maria Bonita. E foi a partir dela, ou melhor, de seu núcleo familiar, apresentando o cenário da fazenda Malhada da Caiçara no sertão da Bahia, que resolvemos começar nossa jornada. Trata-se, afinal, não de um retrato fiel, mas de uma reinterpretação, com matizes ficcionais, da trajetória de Virgulino Ferreira da Silva, o temível Lampião, que o poeta cordelista José Pacheco da Rocha, exagerando, mas não mentindo, dizia ser “assombro do mundo inteiro”. Esses matizes podem ser percebidos principalmente nos diálogos, culminando com o tema do título, o sonho do cangaceiro, que apresenta uma encruzilhada narrativa, tentando imaginar o que seria a vida de Lampião e, consequentemente, a de Maria de Déa, se ele não tivesse sido acusado e perseguido por José de Saturnino, entrando para o cangaço e arrastando consigo parte de sua família.

Maria de Déa
Xilogravura de Lucélia Borges

A ideia, quase uma fanfic, discute o fatalismo vivo nas crenças populares, reforçado nos discursos de cangaceiros e volantes, que, por vezes, serve para justificar as mazelas sociais e as seculares injustiças. Algumas perguntas não precisam ser respondidas, mas devem ser marteladas, pois, se não levam a um consenso, ajudam a enxergar melhor uma história que passa longe de ser unidimensional. “Lampião, escreve Eric Hobsbawn, foi e ainda é um herói para o seu povo, mas um herói ambíguo”. Mais que ambíguo, contraditório, daí as muitas interpretações conflitantes, versões desencontradas e perfis que ora focalizam o homem, ora o mito.

Corisco, Dadá e Zé Rufino
Xilogravura de Lucélia Borges

O cangaço, sabemos, não teve início com Lampião, e a nossa história mostra, inclusive, que seu ingresso ocorreu, depois de algumas refregas com José de Saturnino, com a sua acolhida pelo bando de Sinhô Pereira. O Nordeste ainda não havia se esquecido de Antônio Silvino, alcunha de Manuel Batista de Moraes, cangaceiro nascido na Serra da Colônia, Pernambuco, mitificado em romances versados pelos poetas Francisco das Chagas Batista e Leandro Gomes de Barros. Silvino, depois do assassinato de seu pai, Pedro Batista de Morais, e da apropriação de terras de sua família, pela companhia inglesa Great Western, para construção de uma estrada de ferro, depois de liderar por dezoito anos um bando armado, acabou sendo preso em 1916; permaneceu na casa de detenção do Recife até 1937, quando foi indultado pelo presidente Getúlio Vargas.  Antes de Antônio Silvino, a história registra os nomes de Adolfo Meia-Noite, Rio Preto, Jesuíno Brilhante e Lucas de Feira, entre outros."

Lampião, Benjamin e Padre Cícero
Xilogravura de Lucélia Borges


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quarta-feira, 9 de novembro de 2022

ROLANDO BOLDRIN, O IMENSO ARTISTA QUE O BRASIL PERDEU

 

Lançamento do livro História de Contar o Brasil.
Bienal do Livro de São Paulo, 2012.

O dia 9 de novembro de 2022 ficará marcado por ser o da despedida de dois grandes artistas, duas grandes potestades da natureza, dois talentos de um Brasil gigante, geográfica e musicalmente. Nem deu tempo prestar uma homenagem adivinha e maravilhosa Gal Costa, e já deparo com outra perda, outra peça fundamental do tabuleiro da cultura brasileira: Rolando Boldrin. Ator, cantor, compositor, contador de histórias, apresentador de TV, Boldrin era o último de sua linhagem, artista a um só tempo telúrico e cósmico. Conheci-o ainda na infância, por meio de uma TV preto e branco, por onde assistíamos o Som Brasil, na Globo, programa que ele apresentava com orgulho e galhardia e que trazia, ainda, o lendário Ranchinho, da dupla com Alvarenga, artistas que tanto inspiraram Boldrin desde a sua infância em São Joaquim da Barra, interior paulista.

Em 2012, a convite da editora Nova Alexandria, fui cuidar da edição de seu livro História de Contar o Brasil, ajuntamento de causos, com uma crônica mal disfarçada em prefácio, missão que aceitei com indisfarçável orgulho. Na época, não estava mais fixo na editora, onde trabalhei por quatro anos e meio, que era a casa publicadora do nosso mestre caipira. O meu trabalho era padronizar o texto, escrito no dialeto caipira de Cornélio Pires, e sanar as dúvidas com o autor, que publicara outros dois livros pela editora: Contando Causos e Proseando: causos do Brasil. Uma tarde, a convite da Rosa, diretora editorial da Nova Alexandria, e de seu irmão, o saudoso Paulo Zuccherato, fomos encontrar Boldrin na sede da TV Cultura, para acertar as últimas pendências sobre o livro. Foi ele que indicou o local. Quando estávamos chegando à sede da emissora, Boldrin acenou de longe, já entrando em seu caso, uma land rover preta, salvo engano, pedindo que o seguíssemos. Não entendemos nada, mas, fazer o quê, seguimos em seu encalço.

Fomos parar no shopping Villa-Lobos, num estacionamento interno, onde um funcionário, consternado, assim que o viu descer, pedia mil desculpas. E nós, até ali, sem entendermos nada. Boldrin, que ria muito, tranquilizou o rapaz e entregou-lhe as chaves do carro. Este as recebeu e deu-lhe outras chaves, e fez mais um rogatório para que Boldrin o desculpasse. Só então, com seu jeito peculiar de contar histórias, ele nos contou o que aconteceu: “Olha, peguei as chaves do carro e me pus a caminho da Cultura, com medo de me atrasar pra reunião com vocês. No meio do caminho, resolvi pôr uma musiquinha, mas quando liguei o rádio, entrou um rock pesado... Pensei que o carro estava possuído. Só então me dei conta de que o manobrista errou de carro. Quando vocês chegaram, eu estava indo ao shopping para devolver o sósia e pegar o meu de volta...”

O resto da tarde foi de muitos causos, incluindo um que ele disse ter lido num livro de Leonardo Mota, o Leota, escritor que ele tanto admirava. Um artista desconhecido que fazia compras no local, reconhecendo-o, presenteou-lhe com um CD.

O livro História de Contar o Brasil foi lançado em dois momentos: na Livraria Cultura do Conjunto Nacional e na Bienal Internacional do Livro de São Paulo, como marco comemorativo dos 20 anos da editora Nova Alexandria. Dez anos depois, o Brasil se despede daquele que o tratava respeitosamente por Senhor.

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Lançamento: Contos Encantados do Brasil

 

Contos Encantados do Brasil, uma viagem ao Brasil profundo
por meio dos contos populares. 

Acaba de sair, com o selo da Aletria, editora mineira sob a coordenação de Rosana Mont'Alverne, o livro Contos Encantados do Brasil, reunião de contos de tradição oral, recolhidos por Marco Haurélio e ilustrados, com xilogravuras, por Lucélia Borges. A obra inova por trazer duas opções de capa assinadas por Caroline Gischewski, responsável pelo projeto gráfico, a partir de xilogravura de Lucélia Borges.

Abaixo, compilamos trechos do prefácio escrito pelo autor:

Se perguntarmos a alguém por que faz determinado gesto, ele poderá não saber o motivo, e talvez responda que o faz “inconscientemente” ou aprendeu com outra pessoa… que aprendeu com outra pessoa, que aprendeu com outra… De forma semelhante, os contos ditos tradicionais se propagam. Ouvimos, repetimos, lembramos, esquecemos, ampliamos, reduzimos. Contamos. E, quando contamos, trazemos para junto de nós, para o nosso círculo familiar, narradores e mais narradores que, ao longo de séculos, milênios talvez, garantiram que as histórias não se perdessem. A trajetória dos contos populares, com destaque para sua incrível capacidade de adaptação, tem suscitado acalorados debates e fomentado o surgimento de algumas escolas, cuja sobrevivência dependeu sempre mais do poder de argumentação de seus membros do que da sua capacidade de, efetivamente, comprovar os seus postulados. Não é nosso propósito aqui enumerar as escolas do Folclore, nomear seus membros ou exumar as suas doutrinas. Importa-nos, por enquanto, tão somente, chamar a atenção para o conto popular, objeto do presente trabalho, uma recolha abrangente, compreendendo um significativo número de versões, que vão desde os contos mais complexos, como o de cunho maravilhoso, aos aparentemente mais simples, e, quando escrevo “mais simples”, refiro-me a questões puramente formais, já que, na contística popular, toda pedra é preciosa. Mesmo o que não reluz é ouro.


O conto popular, também chamado estória (ou história) de Trancoso, da Carochinha, é uma das mais antigas formas de expressão verbal, contemporâneo dos primeiros grupos humanos, irmão do mito, com o qual se confunde, ainda que este se apoie num “ato de crença, de crença em seu objeto, sem o que perde sua base”.1 Irmanado ainda à lenda e à fábula, alimento intelectual de todos os povos, de todas as épocas, o conto preserva, quase sempre de forma cifrada, informações sobre hábitos, usos, costumes, provérbios, crenças, estatutos de épocas as mais diversas, abarcando, praticamente, em sua amplitude temática, todos os assuntos relativos à ciência do Folclore; constitui-se, porém, em parte inseparável do todo, “como a mão com relação ao corpo ou a folha com relação à árvore”. Difere da lenda e do mito por sua universalidade, e com isso não queremos dizer que todos os contos alcançam todos os cantos, e, sim, que, aonde chegam, recebem melhor acolhida graças à sua poderosa capacidade de adaptação.

"Canivetão". Xilogravura de Lucélia Borges. 

A maior parte dos contos maravilhosos difundiu-se por uma vasta área geográfica que vai da Índia à Irlanda, ampliada, depois, pelo processo colonizador. Chegaram ao Brasil, certamente, com as primeiras levas de colonos portugueses e, misturados às narrativas ameríndias, nas quais predominava o fantástico, e às histórias trazidas das Áfricas, ganharam novo colorido no Nordeste primeiramente, mormente nos sertões povoados de assombros milenares. No conto, nada é novo e nada é velho. As transformações atendem a uma dinâmica muito particular que envolve questões externas, como a influência do ambiente e dos costumes e crenças, e internas, estas atinentes às dimensões alegórica e simbólica.

Nas versões sertanejas do conto da Cinderela, a moça não vai ao baile no palácio do príncipe, mas à missa, realiza tarefas típicas do sertão de outrora, como adicionar água aos potes ou alimentar os animais das velhas que a auxiliarão doravante. Os motivos essenciais do conto, no entanto, pouco mudam, qualquer que seja a época ou o lugar. O sapato que possibilita o casamento de Cinderela com o príncipe, por exemplo, é um tema que pode ser rastreado em milhares de versões. Era parte de um rito matrimonial introduzido no Egito, provavelmente durante o domínio persa, nutrindo a lenda de Ródope, a cortesã grega que vem a desposar o faraó. É o que nos conta Heródoto: uma águia arrebata o sapato da nossa heroína e o deixa cair sobre o faraó, fazendo com que o soberano do Egito envide todos os seus esforços para encontrar a dona do tal calçado que tanto o fascinara (História, tomo II, XCVIII). O teste de casamento, por meio do experimento do calçado, era, segundo informação de Luís da Câmara Cascudo, “ainda popular na Alemanha do século XVI”, aproximadamente trezentos anos antes de os Irmãos Grimm registrarem a versão mais famosa da história.

"A princesa da Cara de Pau", versão brasileira de "Pele de Asno".
Xilogravura de Lucélia Borges

Todos os contos reunidos neste livro foram colhidos diretamente da fonte da memória, isto é, foram ouvidos, anotados e fixados, mantendo-se sua estrutura básica e conservando, quase sempre, as marcas da oralidade. Os narradores, guardiães da tradição, são identificados ao final de cada história. Um deles, o senhor José Marques de Sousa, apelidado carinhosamente de Zé Cabeça, falecido em 2019, por ocasião da coleta das histórias, em 2015, afirmou ter 107 anos de idade. Além de Bela Inês e a Moura Torta e Panela, colher e chicote, narrou outros contos, publicados no livro Vozes da tradição. Três histórias (Branca Flor, Bestore e a princesa e Maria Borralheira) foram publicadas originalmente no livro O Príncipe Teiú e outros contos brasileiros, de circulação muito restrita.

No tangente à divisão, optamos pelo Sistema ATU (Aarne-Thompson-Uther), adotado em outras publicações nossas, com uma única alteração: começamos pelos contos maravilhosos, ou de encantamento, mais numerosos, e não pelos contos de animais, como seria de se esperar, por se tratar de uma tabela alfanumérica. Contamos, como sempre, com o apoio dos professores Paulo Correia e José Joaquim Dias Marques, do Centro de Estudos Ataíde Oliveira (CEAO), da Universidade do Algarve, Faro, Portugal.

"Maria da Cobrinha". Xilogravura de Lucélia Borges.

Recolhidos, em sua maioria, no sertão baiano, universais nos motivos e temática, nacionais nas cores, sotaques, variantes linguísticas e no colorido da flora e fauna, os nossos contos comprovam o que foi dito pelo grande escritor mineiro João Guimarães Rosa, que também bebeu na fonte da tradição: “O sertão é o mundo.” Mundo que vira mar, como previu o beato Antônio Conselheiro, mar de histórias, água de vertente que, teimosa, ainda cisma em correr.

Italo Calvino, no posfácio ao Pentameron, em 1974, afirma que “el mundo de las fábulas és um mundo matinal”, e, no caso de Basile, manifesta-se sempre com uma metáfora distinta. Na nossa coletânea, alvoradas e crepúsculos se alternam em muitas narrativas, mas a mensagem, implícita, é a de que as histórias sempre vêm à luz. Basta que tomemos assento e abramos o coração e os ouvidos, para que a jornada comece. Ou recomece, quando, a cada escuta, espaço e tempo se transfiguram e podemos contemplar, embevecidos, as cores de um entardecer que jamais deixou de ser manhã.

MAIS INFORMAÇÕES:

Título original: Contos Encantados do Brasil

2022, 1ª edição

337 páginas, 13,5 x 20,5 cm

ISBN: 9786586881851

Autor: Marco Haurélio

Ilustrações: Lucélia Borges


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